Ams­ter­dam Stories

por Eduar­da Neves, 2017

“O fic­tí­cio não está nun­ca nas coisas nem nos home­ns, mas na impos­sív­el verosim­il­hança do que está entre eles: encon­tros, prox­im­i­dade do mais longín­quo, abso­lu­ta dis­sim­u­lação lá onde nós esta­mos. A ficção con­siste, por­tan­to, não em mostrar o invisív­el, mas em mostrar o quan­to é invisív­el a invis­i­bil­i­dade do visív­el” (Michel Fou­cault – Ditos e Escritos III, p. 225).

Em Ams­ter­dam via Ams­ter­dam (2004) e Ams­ter­dam Sto­ries USA (2012), filmes de Rob Rom­bout e Rogi­er Van Eck, inter­rog­ar tor­na-se a fer­ra­men­ta her­menêu­ti­ca que não se propõe negar ou faz­er sucumbir o sen­ti­do, mas faz­er com que a história se enun­cie de out­ro modo.
Não esta­mos per­ante um qual­quer inven­tário da história amer­i­cana, ao qual chegaríamos pela nar­ra­ti­va da história ou pela história nar­ra­da. Escu­ta­mos vozes que nos devolvem a real­i­dade das condições de existên­cia. Nas suas dimen­sões pri­mor­dial­mente analíti­cas e na sua aparente sim­pli­ci­dade, não há lugar, nes­tas ima­gens, para for­mas puras: tra­ta-se de ouvir os que têm a sua própria voz e não os que falam por eles, como nos é dito em Ams­ter­dam Sto­ries USA.
Ultra­pas­san­do a lóg­i­ca poten­cial­mente nor­mal­izado­ra da “janela para o mun­do”, do ref­er­ente e do sim­u­lacro, as obras, enquan­to sis­temas soci­ais de sig­nifi­ca­do, con­frontam-nos com espaços estru­tu­ra­dos e estru­tu­rantes através dos quais vamos orga­ni­zan­do e pro­jectan­do o sentido:

“Os nos­sos dois mod­e­los bási­cos de rep­re­sen­tação ape­nas com­preen­dem o essen­cial des­ta genealo­gia pop: que as ima­gens estão lig­adas a ref­er­entes, a temas icono­grá­fi­cos ou coisas reais do mun­do, ou então, alter­nada­mente, que o que todas as ima­gens podem faz­er, é rep­re­sen­tar out­ras ima­gens, que todas as for­mas de rep­re­sen­tação (incluin­do o real­is­mo) são códi­gos auto-ref­er­en­ci­ais. A maio­r­ia das expli­cações da arte do pós-guer­ra (…) divi­dem-se num e out­ro lado des­ta lin­ha: a imagem como ref­er­en­cial e como sim­u­lacral. Esta redu­to­ra dis­junção restringe tais leituras des­ta arte”. (Hal Fos­ter – El Retorno de lo Real, p. 130).

A pre­sença do real não sig­nifi­ca a afir­mação do real­is­mo mas a defe­sa de uma poéti­ca que encon­tra na real­i­dade a ver­dade da aparên­cia ou, à maneira niet­zscheana, não há out­ra ver­dade a não ser a aparên­cia.
É o “tex­to fílmi­co” que se con­figu­ra como espaço de com­plexa inter­tex­tu­al­i­dade e se con­sti­tui como lugar de diál­o­go: o quo­tid­i­ano, as relações soci­ais, a vio­lên­cia urbana, a morte, a pobreza, o racis­mo, a mul­ti­cul­tur­al­i­dade, a seg­re­gação, a solidão, a liber­dade, a ale­gria, os ideais, os mod­os de vida, a col­o­niza­ção, a guer­ra. Tex­tos que se sobrepõem em camadas, através das quais ouvi­mos diz­er que, ape­sar da Améri­ca difundir de si mes­ma a imagem das grandes cidades, ”a maior parte dos amer­i­canos são insu­lares (…) não sabem o que se pas­sa no seu exte­ri­or”, emb­o­ra tam­bém pos­samos falar de “um povo decente, gen­eroso, tolerante”.

« In the wan­der­ing of these trav­ellers who renounce cer­tain­ty, is expressed what we are in becom­ing, our becom­ing-oth­er, what we grad­u­al­ly become, but also what still sep­a­rates us from ourselves. »

De igual for­ma, nes­tas Ams­ter­dam Sto­ries, se, por um lado, não há lugar para condições excep­cionais, por out­ro, uma cer­ta geografia da memória recor­da-nos que, quan­do pen­samos já estar próx­i­mos de out­ro lugar, de um out­ro tem­po, afi­nal podemos nun­ca de lá ter saí­do. No vagabun­dear destes via­jantes que renun­ci­am às certezas, exprime-se o que somos em devir, o nos­so devir-out­ro, o que vamos sendo, mas tam­bém o que ain­da nos sep­a­ra de nós próprios.
Como Michel Fou­cault notou, o navio é het­ero­topia por excelência:

“o bar­co é um pedaço flu­tu­ante de espaço, um lugar sem lugar, que vive por si mes­mo, que é fecha­do sobre si e que é deix­a­do, ao mes­mo tem­po, ao infini­to do mar (…). Com­preen­dem porque é que o bar­co foi para a nos­sa civ­i­liza­ção, des­de o sécu­lo XVI até aos nos­sos dias, (…) a maior reser­va de imag­i­nação. O navio é a het­ero­topia por excelên­cia. Nas civ­i­liza­ções sem bar­cos os son­hos secam, a espi­onagem sub­sti­tui a aven­tu­ra, e a polí­cia, sub­sti­tui os corsários.”(Michel Fou­cault – Ditos e Escritos III, p. 46 ).

Nos bar­cos de Ams­ter­dam Sto­ries, os son­hos não secam e con­tin­u­am a ras­gar o mar.

A de Ams­ter­dam. A de Améri­ca. A actu­al­i­dade fez-se anun­ciar. Não há histórias felizes.

Tre­cho do Ams­ter­dam Sto­ries USA, de Rob Rom­bout e Roger van Eck, 2013